domingo, 11 de janeiro de 2009

O Niilismo e a resposta calvinista ao problema do nada

Postado por Felipe F. Inácio



1. Introdução
Nesse modesto trabalho, discutiremos sobre o pensamento niilista, como a humanidade se chegou até ele, as conseqüências do problema do nada e qual a resposta singela da filosofia calvinista. Esse trabalho não pretende ser extensivo, então o leitor não irá encontrar aqui uma visão completa do pensamento niilista. Iremos nos aprofundar no motivo-base religioso do pensamento niilista e de como o mundo pós-moderno abraçou esse pensamento. Nesse artigo não entenda o calvinismo como uma simples corrente teológica, passaremos a lidar o calvinismo mais como uma biocosmovisão, como uma visão geral do mundo onde Deus governa todas as áreas da vida.

2. Conceito
Franco Volpi, um grande filósofo italiano, faz uma analogia do que seria o niilismo.
“...Lembra de uma andarilho que há muito caminha numa área congelada e, de repente, com o degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil pedaços, Rompidos a estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se difícil prosseguir o caminho.”
Nietzsche nos traz uma resposta mais direta “Niilismo: falta-lhe finalidade. Carece de resposta a pergunta ‘para quê? ’ Que significa o niilismo? Que os valores se depreciaram.” O niilismo seria então, a perda de valores, a descrença em qualquer valor transcendente, absoluto ou cristão. É a completa perda de sentido nos valores estabelecidos pela sociedade. A crença em nada. Outra analogia bastante proveitosa para nosso estudo seria a de Nietzsche em A Gaia Ciência
“A distância. Esta montanha cria todo o encanto e todo o caráter da região que domina: tendo-nos dito isso pela centésima vez tornamo-nos bastante loucos e bastante reconhecidos para acreditar que, conferindo este encanto, deve ter em si própria o que há de mais encantador na região; subimos ao cume e ficamos desiludidos. De repente o encanto desaparece das suas encostas, da paisagem que nos rodeia e daquela que se estende a nossos pés; esquecemos que grande número de grandezas devem, como grande número de bondades, serem vistas a certa distância, e de baixo, nunca do alto... é só assim que fazem efeito. Talvez conheça pessoas do seu meio que só podem olhar-se a si próprias a uma certa distância para se julgarem suportáveis, sedutoras e tônicas: o conhecimento de si é uma coisa que deve lhe ser desaconselhada.”

Nesse aforismo Nietzsche compara o ato de subir a montanha e olhar do alto como a atitude niilista de ver na realidade o sentido dos valores. Segundo Nietzsche, as pessoas se encantam com a montanha porque olham de baixo e os valores éticos (“grande número de bondades”), estéticos (“grande número de grandezas”) e sociais (“talvez conheça pessoas do seu meio”) só são mantidos quando se tem essa ótica.
É importante notar que para Nietzsche e Heidegger o niilismo não seria um pensamento filosófico ou uma teoria, mas sim a lógica da decadência do mundo Ocidental.

3. Origem
Concentraremos-nos agora, em como essa “corrente filosófica” passou a existir. Usaremos como base de nosso estudo o pensamento nietzschiano, uma vez que ele é um dos maiores propagadores do niilismo. Segundo o filósofo alemão, o platonismo foi o precursor da decadência humana ao fazer uma distinção entre mundo verdadeiro e mundo aparente. A respeito do comportamento niilista, frente à dicotomia proposta pela filosofia platônico-socrática, ele fala: “niilista é aquele que julga, do mundo que é, que não deveria ser, e, do mundo como deveria ser, que não existe.”
Em um texto inserido em sua obra, Crepúsculo dos ídolos, chamado “como o mundo verdadeiro se tornou uma fábula” Nietzsche faz um panorama histórico de como se chegamos ao niilismo. Seu texto está esquematizado em seis capítulos sintetizados abaixo:
1. O mundo verdadeiro, acessível ao sábio, ao devoto, ao virtuoso– ele vive nele, ele próprio é esse mundo.

Nesse primeiro aspecto, se inicia uma divisão proposta por Platão sobre os dois mundos, o mundo verdadeiro ou supra-sensível, e o mundo aparente. Esse mundo só é acessível ao sábio, nessa primeira tomada, ainda não há uma divisão completa, uma vez que o mundo verdadeiro ainda é acessível.

2. O mundo verdadeiro, inacessível agora, mas aberto ao sábio, ao devoto, ao virtuoso (“ao pecador que se faz penitência”)
Nesse ponto a ruptura entre os dois mundos ocorre, o mundo sensível passa a ser desprezado, e o sentido de vida do sábio seria o mundo verdadeiro, inatingível por algum tempo. Nietzsche assemelha o platonismo com o “cristianismo para o povo”, afirmando que a postura ascética do cristianismo, faz com que o povo desvalorize o mundo sensível, julgando-o um mundo transitório, aparente e sem valor e passe a agir segundo uma fé, uma promessa.

3. O mundo verdadeiro, inacessível, indemonstrável, que não pode ser prometido, mas já, ao ser pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo.
Essa fase da história é caracterizada pelo irracionalismo alemão de Kant. Segundo Kant, não se pode provar o mundo verdadeiro através da razão pura, mas somente de uma razão prática, pois, segundo o filósofo, a existência desse mundo seria um bom motivo para os homens agirem com um padrão ético aceitável. A existência então do mundo verdadeiro, não passa de uma hipótese.

4. O mundo verdadeiro – inacessível? Em todo caso, inalcançado. E, como inalcançado, também desconhecido. Conseqüentemente também não consolador, salvífico, obrigatório: a que poderia algo desconhecido nos obrigar?
Nessa fase da história, marcada pelo ceticismo, o conceito de mundo verdadeiro não é mais obrigatório, não tem mais nenhum valor moral-religioso, se caracteriza pela queda do argumento kantiano da razão prática. No entanto, nessa fase da história não se chega à superação do platonismo-niilismo, pois o mundo verdadeiro, apesar de não ser consolador, salvífico e obrigatório ainda existe ontologicamente, ele só passa a ser incognoscível.


5 . O “mundo verdadeiro” – idéia que não é útil para mais nada, que não é mais nem sequer obrigatória -, idéia que se tornou inútil, supérflua, consequentemente uma idéia refutada: suprimamo-la!

A partir desse capítulo Nietzsche propaga a sua filosofia. “A morte de Deus”, conhecido em seus acalorados discursos, é o ponto proeminente nessa fase da história do platonismo-niilismo. Com essa frase ele quer dizer que os valores cristãos perderam qualquer sentido anteriormente proposto, uma vez que para Nietzsche o motivo da vida ascética do cristianismo era a promessa de um mundo supra-sensível, um mundo verdadeiro, este que foi destruído pelos próprios homens.

6. O mundo verdadeiro, nós o abolimos: que mundo resta? O aparente, talvez?(...). De forma alguma! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente.

Quando Nietzsche deseja abolir o mundo aparente, ele quer tão somente se desfazer da dicotomia proposta por Platão, ele impede que o mundo sensível assuma o lugar do mundo supra-sensível. Colocando em termos de valores, se abolimos os valores supremos (supra-sensível) devemos também abolir qualquer valor que o homem (sensível) tente impor. Ele não se contenta em somente “matar a Deus” ele deseja abolir qualquer outro valor absoluto.
Nietzsche em sua construção filosófica, não permite que nenhum outro valor sobreponha os valores anteriormente abolidos. O que deve ocupar o lugar que os valores vencidos preenchiam seria, segundo o filósofo alemão, a vontade do poder.
A vontade do poder é a vontade inata no homem pelo poder, é a vontade que permitiria o fluxo de nossos reais desejos, a vontade de criar, se superar, querer cada vez mais o poder e o prazer. “O que é bom? – Tudo aquilo que desperta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder.” O indivíduo que carrega em seu ser essa vontade, ele o chama de Super-homem. Sobre este ele diz:

“Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para sucumbir e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra um dia pertença ao super-homem”

Contra essa vontade do poder, Nietzsche encontra um inimigo, que é o Cristianismo com sua filosofia enfraquecedora do espírito do homem. “O cristianismo tomou partido de tudo o que é fraco, baixo, incapaz...”. A grande ira de Nietzsche contra o cristianismo é que segundo ele, os cristãos colocam todo o sentido da vida num plano metafísico, ou seja, desvalorizam qualquer sentido da vida terrena.
A atitude de Nietzsche em abolir os valores e abolir o lugar em que estes ocupavam é chamada de niilismo ativo, em contraste com o niilismo passivo, que é a prática de substituir os valores tradicionais, cristãos e absolutos, por valores humanos.

4. Introdução a filosofia reformada
A filosofia reformada nasceu em berço holandês através da obra do filósofo Herman Dooyeweerd e D. T. H. Vollenhoven. Inspirados no movimento iniciado por Abraham Kuyper, eles passaram a ver o cristianismo como abrangente em todas as áreas da vida. Herman Dooyeweerd combatia vigorosamente contra o dogma da autonomia da razão. Para ele todo indivíduo carrega consigo uma pressuposição, um motivo-base religioso, e esse é sempre o ponto de partida de toda filosofia. A grande contribuição dooyeweerdiana é que em seu tempo, os cristãos tentavam defender o evangelho com as mesmas armas do inimigo, no caso, o humanismo secular e a escolástica católica. Ele propõe um novo sistema em contraste com essas outras filosofias, um sistema teo-referente, a filosofia reformacional.
A filosofia reformacional, trouxe uma biocosmovisão que se estrutura em criação/queda/redenção. A conseqüência desse motivo-base religioso, é que a vida que vivemos na terra deve ser vivida de acordo com o mandato cultural deixado para os homens. O único modo que um cristão verdadeiro deve viver é observando todos os aspectos da realidade como a boa criação de Deus. Então, a filosofia calvinista vai contra qualquer asceticismo cristão, pois ele vê tudo como a criação de Deus, logo inerentemente boa. A matéria, sugerida por Platão, como eterna e caótica, para um cristão reformado ela passa ser algo que o Soberano Deus criou ex-nihilo e sob total controle.
Um ponto fundamental para a cosmovisão cristã é a afirmação de que o homem após a queda sofreu os efeitos noéticos do pecado, deixando assim de pensar de forma coerente com a realidade. Tudo ocorre no Jardim, quando o homem perde a teo-referência e tenta assumir o lugar de Deus em determinar o que é coerente com a realidade. O homem constrói a partir do Éden uma pretensa autonomia, deixando de lado qualquer influência externa e passando a analisar a “verdade” como ela é. Tal autonomia é irreal, uma vez que todo homem carrega em si, um motivo-base religioso, podendo ser de obediência ou de rebeldia a Deus. Tendo em vista esses efeitos provocados pelo pecado é inconcebível a defesa do dogma da autonomia da razão.
A Filosofia reformada defende também a futura redenção completa do ser humano. Os efeitos noéticos do pecado são de natureza irreversível. Somente com a ação regeneradora do Espírito Santo é que a pretensa autonomia é lançada por terra e se constrói uma teo-referência. O homem redimido olha para todas as áreas da vida e encontra a soberania divina. Como diria Abraham Kuyper: “não há um milímetro cúbico em todas as áreas da existência humana sobre o qual Cristo, que é Soberano acima de todos, não possa dizer ‘É meu! ’ ”. O cristão tem em vista também, que a completa redenção só se dará na consumação dos séculos, quando Cristo redimir todas as coisas. Um calvinista sério, no entanto, não iria cair no erro do asceticismo cristão, pois apesar de não ser completamente redimido, todavia, a única forma que o agrada de viver, é a completa soberania de Deus em todas as esferas da vida. Então, mesmo em um mundo caído, ele vê, e assim deseja ardentemente, a Glória de Deus.

5. A resposta Calvinista ao problema do nada
O cerne do niilismo proposto por Nietzsche é a crítica da visão platonista do Cristianismo e o possível diagnóstico com a “vontade de poder”. Vamos analisar duas citações do filósofo:
“Para aquele que sofre é necessário uma esperança que a realidade não possa contradizer- e da qual satisfação alguma os consiga afastar uma esperança além-túmulo.” Ele nota que o Cristianismo não encontra sentido para a vida terrena, e passa a viver com uma esperança além-túmulo. Nietzsche propõe então a seguinte solução para o problema: “O que é bom? – Tudo aquilo que deserta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder.”
Até certo ponto a crítica nietzschiana em relação ao “cristianismo” é procedente. Não se pode conceber um asceticismo na vida cristã, esse não é o Evangelho pregado por Cristo e pelos apóstolos. No entanto, sua generalização é totalmente incoerente. A proposta calvinista é muito superior a vida ascética. Como vimos anteriormente, o verdadeiro Cristianismo mostra um profundo respeito com a criação de Deus, ele não vê sentido somente na via além-túmulo, mas valoriza a criação de Deus e encontra valores magníficos.
Abraham Kuyper nos ensina o valor da vida terrena:
“Onde quer que o homem esteja, seja o que for que faça (...) ele está; seja onde for, constantemente diante da face de Deus, está empregado no serviço de Deus, deve obedecer estritamente a seu Deus e acima de tudo, deve ter como alvo a glória de Deus.”
Aí está o âmago da filosofia reformada, que seja o que quer que façamos nessa vida, tudo tem como alvo a glória de Deus. Sendo assim, encontramos o valor da vida terrena, o sentido para a ética, para o convívio social, para a relevância do trabalho comum, que é a glória de Deus em todas as áreas da vida.
Nietzsche tem uma concepção errada sobre a origem do moralismo. Ele acredita que a moral foi imposta pelo Cristianismo, atribuindo assim, algo que é divino a uma simples vontade humana. Se em nós há amor, é porque Deus é todo amoroso. Se em nós há um relacionamento social, é porque o Deus trino se relaciona ininterruptamente. Se em nós há alguma forma de poder, é porque o Deus todo-poderoso nos outorgou.
O diagnóstico de Nietzsche é falho porque coloca o homem como centro de todas as decisões. O único “valor” que controla o super-homem é a “vontade de poder”. Para ele, devemos desprender de qualquer valor imposto sobre nós, mas ele não compreende que a ética é algo intrínseco ao ser do homem. De fato, há no ser do homem uma “vontade de poder”, é o que chamamos de natureza corrompida. Seus desejos foram afetados pela rebeldia humana de se proclamar um deus. Porém como ensinou Calvino, Deus derrama da sua graça comum sobre todos os homens e eles podem agir, mesmo que em um grau mínimo, baseados em um padrão ético.
O mundo pós-moderno sofre hoje uma completa perda de sentido, onde o único valor absoluto aceitável é a visão relativista do mundo. O homem se coloca como a verdade última, como o ser cuja escolha é suprema e não há nenhum valor externo a ele. Se o referencial dos valores está no homem, e não há valor que o transcenda, então não há sociedade, não há ética, não há conhecimento científico. Tal visão é incoerente com a realidade. Somente com o referencial divino, perdido a partir do jardim do Éden, é que iremos ter uma visão abrangente da realidade. Como diria Cornelius Van Til: “O homem tem que viver e só pode viver coram Deo.”

11 comentários:

Anônimo disse...

Meu nobre!Que postagem !
Espero que as proximas sejam cade vez mais nessa direção de uma apologia concistente e biblica.

Anônimo disse...

A adoração ao "Nada" requer uma remontagem sobre a consciencia do vir-a-ser do mundo. A espiritulidade humana é digna de respeito e temor. Até a análise científica propõe um aprofundamento nas questões teológicas.

Parabéns pelo trabalho. Paz.

Leonardo Bruno Galdino disse...

Caro Felipe,

Muito boa a sua postagem. Você demonstrou ter calibre para defender a fé dos ataques da pseudo-filosofia deste século. Espero que esse seu blog seja mais um na defesa e divulgação da cosmovisão reformada ante a mediocridade e acriticismo largamente propostos, defendidos e praticados pelo evangelicalismo pós-moderno.

Um grande abraço,
Leonardo.

P.S. Visite, se puder, meu modesto blog opticareformata.blogspot.com.

Apologia e Espiritualidade disse...

Grande Onésimo!
Obrigado pelo comentário. Acredito que Deus está nos levantando para transformar com o poder do Evangelho essa geração!

Soli deo gloria!!!

Apologia e Espiritualidade disse...

Filosovida, ou melhor, Nobre César,
como você disse, a espiritualidade humana é digna de respeito e temor!Cabe a nós defender o legado deixado por Deus ao homem!

Apologia e Espiritualidade disse...

Leonardo,
Obrigado pelo comentário e pela esperança depositada a este blog. Nosso desejo é ver a glória de Deus em todas as áreas da vida. É mostrar que somente o genuíno Evangelho é capaz de dar as respostas às solicitudes da vida!


Soli deo gloria!!!

P.S: Irei visitar seu blog e brevemente irei comentá-lo e linka-lo também! :)

Anônimo disse...

é um tema de meu extremo interesse.

e neste caso, o próprio ateísmo é uma espécie de ascetismo, e logo, arrogância .

bela iniciativa.

Felipe Inácio disse...

Matheus,
Obrigado pelo comentário, o desejo do nosso grupo é justamente trabalhar em defesa da Fé ante o ataque ferrenho do mundo pós-moderno.

Pr. Lourival Nascimento disse...

Amado irmão Felipe,

Obrigado pelo link para este blog, vou aparecer por aqui para beber um pouco do conhecimento de vcs o blog do guilherme carvalho que vc indicou lá na comuna eu já visito. Acho o pessoal do L'abri gente séria no compromisso de andar com Deus. Parabéns pela iniciativa.

Soli Deo Glória!!

Lourival Nascimento

Felipe Inácio disse...

Pr. Lourival,

Fico muito feliz que tenha visitado o nosso blog, como eu disse na comunidade estamos iniciando ainda, mas pretendemos levar à frente essa importante missão de Defender a Fé Cristã!


Soli deo gloria!!!

Unknown disse...

Meu Deus não sabia que estava casando com um filosofo!
Realmente você me surpreendeu com esse trabalho.
Você sabe muito mais do que eu imaginava saber.
Te amo meu lindo filosofo : )